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[Artigo] Diálogo sobre a resistência ao retrocesso da Reforma Psiquiátrica no Brasil

Que tarefa eu aceitei! Falar da Resistência ao retrocesso da Reforma Psiquiátrica no Brasil dói a alma. Sangra o coração. E também alivia, já que temos a resistência para nosso conforto. E, se é dos afectos de Deleuze e Espinoza que se trata, só cabe me permitir sentir a dor pra que ela me mostre um possível caminho de criação. Sim, temos caminhos possíveis.

É impossível falar desse assunto sem contextualizá-lo em seu campo maior: o Retrocesso Brasileiro. Estamos em um momento crucial. Momento político em que a política partidária nos manipula, na nossa cara. Sem dó, sem piedade, sem se esconder. “Brasil, mostra tua cara, quero ver quem paga pra gente ficar assim”, nosso poeta Cazuza tão atual.

Os ensinamentos científicos não subsidiam a gestão de nosso país. Não que eu não desconfie das ciências. Sempre as questiono, sobretudo a minha, Psicologia, que já serviu a tantos horrores. Mas, do que adianta uma COPPE da vida (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro) ensinar como se faz um asfalto se nossos prefeitos insistem em tampar buracos mês a mês pra dizerem que trabalham e cuidam de nós? Tudo, um jeitinho, e nós felizes demais com cada buraco tampado.

Por outro lado, as pessoas se agredindo e se matando a troco de partidos, gênero, etnia e religião. Que diabos temos a ver com o sexo das pessoas? Você transa com quem você escolhe. Que diabos temos a ver com a religião dos outros? Vá na que tu gostas. E a cor? O mundo é colorido, pessoal, e o preto faz parte. Já os partidos, temos nossa ideologia, mas as lutas devem ser para melhorar um povo, e não para matar. Bem lembrado, a morte. A morte pode não ser a morte física: querem que morramos. Nossos sonhos derrubados.

A gestão pública de forma geral deseja o aniquilamento do servidor público, visto como escravo. Muitas vezes sem água para beber no serviço, sem direito a um lanche, sem direito a ir a um banheiro decente. Sem material para trabalhar. E os funcionários públicos, safados, que não gostam de trabalhar, tiram dinheiro de seu bolso para o paciente não sofrer mais. É preciso frisar que muitos gestores não entendem nada de gestão, são comparsas partidários. E fazem questão de marcar que funcionário público não presta, não gosta de trabalhar, mas eles estão lá, nos gerindo, a troco de quê? Não posso deixar de citar o patrulhamento da máquina pública no dia anterior ao feriado do dia do trabalho. Não quero acreditar que seja verdade mas, verdade ou mentira, esse tem sido o sentimento em muitos lugares.

Gente, a Reforma Psiquiátrica não está fora desse movimento. Um esforço hercúleo desde os anos 1970 dos profissionais de saúde mental para desmontar uma máquina desumana de um falso cuidado em saúde mental. A Reforma nasce de nós. Dos incômodos sentidos no cotidiano de quem de fato está com o usuário. E de quem de fato, embora ocupando espaços de gestão, estavam com os pacientes. Agora, em 2018, passados em torno de quase 50 anos, o movimento que nós considerávamos acabado retorna de forma sórdida.

Eles não são burros. Não vão dizer em lei que são contra a Reforma. Organizam-se. Olhemos a Portaria no 3588 de 21 de dezembro de 2017. Coloca o Ambulatório em Saúde Mental no âmbito da Atenção Básica, dificultando a relação da saúde mental com o PSF (Programa Saúde da Família). Mudar de pasta, neste caso, incide em um retrocesso. Em 10 de abril de 2018 aconteceu em Brasília o 1º Fórum Brasil – Agenda Saúde, para criar um novo sistema de saúde organizado pela Federação Brasileira de Planos de Saúde com participação do Ministério da Saúde, senadores e deputados, propondo desmantelamento do SUS estrangulando o seu financiamento. Para alguns políticos presentes no Fórum o SUS é um projeto comunista cristão. Pasmem!

Além desta pérola, criam editais como o de Santa Catarina, edital 439 de 2017, ou o de Brasília ligado a justiça e não à saúde mental diretamente, que contemplam instituições que não fazem parte do Sistema Único de Saúde, como por exemplo as Comunidades Terapêuticas, e deixam de investir nos Centros de Atenção Psicossocial, nos Centros de Convivência, nas Residências Terapêuticas, e outros dispositivos de saúde mental. E assim, reafirmam a ideia de que o que é público não presta. Não vai prestar mesmo não. Sem investimento, sem dar condição de trabalho, fica difícil mesmo.

Só a boa vontade de um médico, um enfermeiro, um psicólogo, um oficineiro, um cozinheiro não dá conta do trabalho. Fazer oficina terapêutica sem material é impossível. E lá vai o terapeuta ocupacional pedir a parentes e amigos um pouquinho de chamex e restos de lápis de cor. Até quando vamos sustentar os governos? É fácil para um vereador que faz de seu compromisso religioso seu ofício dizer que o CAPS não dá conta, ao invés de cobrar do governo municipal investimento no CAPS, que é seu papel como vereador, como já ouvi em outros carnavais. Portanto, atenção ao manejo, às tensões estabelecidas.

Pois bem, o retrocesso ainda se dá quando os governadores, prefeitos, e seus respectivos secretários de saúde e coordenadores de programas não resistem a essa força maior. Não questionam seus papéis de servidores públicos, ainda que temporários, e optam por não servir à população. Particularmente, algo que me mata são as frases prontas dos gestores: Obedeço ordens, ou, eu enquanto pessoa faria isso, mas como gestora, faço aquilo. A maior parte dos gestores devem ser esquizofrênicos ou com transtorno de múltipla personalidade! Falo disso com propriedade, pois também já fui gestora, e sei que temos que escolher nossas ações, a bioética que o diga, mas é possível manejarmos as situações de forma humana.

E nós, trabalhadores de saúde mental e gestores do cuidado em saúde, como ficamos em nossa paidéia?

Muitos de nós, ameaçados por vozes e olhares que nem sequer se modulam, além do controle absurdo e exigência de excelência nessa falta de investimento. “Produzam, produzam, não respirem”. E assim, ficamos com síndrome de burnout, transtornos de ansiedade, confusão mental, dependência química, incluindo aí os remédios que médicos e enfermeiros tem acesso com mais facilidade. Levamos nosso sofrimento psíquico pra casa, pros amigos. Nos sentindo, com perdão da palavra, incompetentes. Nos sentindo desrespeitados. E ao mesmo tempo responsáveis pelo cuidado das pessoas.

E vão assim dizer que estamos adoecidos e não servimos para o serviço. Lembrem-se de que os que adoecem são os que se importam, os comprometidos, os investidos pela luta antimanicomial. Nesse momento, alguns de vocês podem me perguntar: “ E a tal possível saída que você disse que existe?”

Podemos analisar as saídas possíveis por pelo menos 2 trilhas criando cartografias do desejo, homenageando Suely Rolnik, o desejo coletivo, e o desejo pessoal, estes dois últimos inventados por mim ao escrever pra vocês. Dialogando com Baremblitt, vamos considerar o desejo como “algo essencial e imanentemente produtivo o qual gera e é gerado no processo mesmo de invenção, metamorfose ou “criação” do novo. Sua essência não é exclusivamente psíquica, pois participa de todo o real”. E a potência se refere “às capacidades virtuais ou atuais de produzir, inventar, transformar, etc. Em geral, a potência designa a magnitude das forças geradoras do radicalmente novo, criador de vida”. Esses conceitos são suficientes.

Enquanto trabalhadores de saúde mental, o coletivo se faz pertinente, tanto no que se refere aos usuários quanto no que se refere a própria equipe. Aos usuários, temos o dever de os politizarmos, de os vermos como autônomos e cidadãos e assim lhes oferecer instrumentos, como leis, portarias, noções de associações, dentre outras, para que se afirmem enquanto donos de si. E isto os gestores não podem nos proibir. Mesmo se forem legalistas. Está em lei. As assembleias de usuários são dispositivos de controle social. Espaço genuíno de cidadania de usuários e profissionais.

Mas o coletivo também se expressa na classe trabalhadora. A compreensão de que somos trabalhadores de saúde mental, independente de nossa formação profissional, pode fazer com que nos auxiliemos e nos vejamos como um grupo. É claro que as diferenças das mais diversas ordens existem. Mas, precisamos estar atentos quando todos estamos ameaçados, quando a reforma está ameaçada.

Como demonstração de um movimento coletivo o Rio de Janeiro se posicionou contra a reforma por meio de um documento “Pacto político pela não implementação no Estado do Rio de Janeiro das novas políticas nacionais de saúde mental e de drogas, sancionadas pelo governo Temer”. Assinaram trabalhadores de saúde mental, associações, professores, dentre outros.

As associações de saúde mental precisam se posicionar. Mas, elas são constituídas por pessoas. Uma associação não é um ente que exista sem movimento de gente.

Assim me parece que não podemos dicotomizar o coletivo do pessoal. Então há uma relação imanente entre o coletivo e o sujeito. Este, com seu desejo pessoal dever ter consciência de seu ser-no-mundo. Não é tarefa fácil. Exige posicionamento. A gente morre, e por algum tempo poderemos ser lembrados. Que legado queremos deixar pro mundo? O que estamos fazendo enquanto estamos vivos?

Como diz Túlio Franco, temos uma liberdade de trabalho e podemos potencializá-la. Façamos nossa micropolítica, “atividade de cada um a partir do lugar social em que ele se encontra” e saibamos lidar com a macropolítica “as normas, regras, aquilo que define a instituição, ao que está instituído. As normas e regras agem como linhas de força regulando as atividades cotidianas praticadas nas instituições, operando no cotidiano, no campo da micropolítica”.

Portanto, temos saída na Rede de Atenção Psicossocial. O que a micropolítica nos diz é que entre nós e os usuários, entre nós mesmos, podemos exercer um certo grau de liberdade. É nesse espaço que vamos nos revigorar para que as ações de fato sejam efetivas.

Sempre erramos. Não sabemos de tudo. Se pudesse, eu faria algumas coisas diferentes. Mas, ter a consciência de que fiz o meu melhor, é impagável. E a nossa reflexão pode significar amadurecimento.

Portanto, falar da resistência ao retrocesso sobretudo para alunos, futuros colegas desse imenso cotidiano é dizer que vocês precisam engrossar esse caldo. Façamos das nossas aulas lugares de resistência. Estudem, critiquem. E sobretudo, ajam. O estudo é meio de luta. A ação é sua concretude. Cabe a nós, que estivemos em determinado momento histórico anterior ao de vocês mantermos o calor do sangue nas veias, e fazer uma transfusão para cada um. E assim, o meu sangue passa a ser seu. Cabe a vocês, cuidarem desta vida para criar outros caminhos que não vislumbramos.

 

* Exposição realizada na mesa redonda “RAPS: Resistência ao Retrocesso da Assistência à Saúde Mental em caráter Interdisciplinar”, na abertura da XI Semana de Enfermagem da Unisulma e II Seminário VER-SUS de Imperatriz. A atividade aconteceu no dia 7 de maio de 2018 no Palácio do Comércio, em Imperatriz – MA.

 

Gizele Cerqueira
Psicóloga (CRP22/00156)
Mestre em Saúde Coletiva
Docente do curso de Psicologia da Unisulma
Especialista em Dependência Química e Saúde Mental